terça-feira, 20 de janeiro de 2009

AS GARRAFALANTES

Nem a torre de Vitória, em Chitor, registra uma fábula assim. Para desenredá-la, basta visitar certo pub em Porto Alegre, no final (ou início) da Carlos Chagas, nas primeiras horas da madrugada. E sentado ou sentada num tamborete junto ao balcão, espreitar o serviço do lavador de copos, reunindo as garrafas de espumante vazias daquela jornada noturna que, por sua vez, conversam entre si.

De duas em duas, são as mais descontraídas. Pois relembram as cenas de filmes citados à mesa, às vezes tão minuciosamente que conseguimos revivar a cena. Embora acaso se equivoquem quanto aos créditos de atores, direção. Outras duas discutem literatura, e as frágeis fronteiras entre a ficção e a realidade; para logo se darem conta que são garrafas falantes, e riem gostosamente desta chiste. E há aquelas mais sérias, que discorrem sobre a memória de moradores dalguma vila, que rememoram saudosas as viagens pelas estradas interioranas que não fizeram, que trocam planos de um futuro mais prazenteiro.

Quando reunidas em três, primam por disparates. Daí fazem apostas sobre shows que não hão de haver; listam infinitos filmes de títulos e diretores inventados; combinam viagens para cidades que ainda não foram fundadas; trocam receitas culinárias cujos ingredientes são denominados apenas por cores; pintam telas de Beatriz Milhazes em guardanapos, mas em preto e branco! E dizem que já cantaram na Sala São Paulo, que moram em coberturas, que em pleno verão carioca optam por um boteco na frente da porta de uma delegacia. Se deixarem estas garrafas falarem mais, aposto até que alguma contará que fugiu no meio da noite para comprar um CD da Cibelle, para ouvir enquanto cozinhava uma polenta mole.

Raras as reunidas em quatro, mas estas tagarelam tão embolado, que mal se distingue o que dizem. E por fim, restam algumas solitárias garrafas vazias. Poucas. Que o lavador de copos separa no balcão, e por falta de companhia permanecem quietas. Contudo, ainda assim é possível adivinhar-lhes suas angústias e descrenças, subliminarmente murmuradas.

O Capitão Burton não registra a lenda das garrafalantes nalguma nota de sua versão das Mil e Uma Noites. Nem foram sonhadas num sonho de Kafka. Mas bem que poderiam.
***
Genialmente escrito
pelo meu grande amigo do Distrito Federal.

3 comentários:

Anônimo disse...

Estilo Borges. Ótimo texto, achei que era seu.

Luciana Dantas disse...

Hahaha... Esse nosso amigo do Distrito Federal se não existisse eu o inventaria.
Adivinha qual foi a parte que me identifiquei:
"...que em pleno verão carioca optam por um boteco na frente da porta de uma delegacia." Rsrsrs...
Demais!!!
Bjs

Vanessa Dantas disse...

Borgiano total!

Pois é Luzinha, e eu me identifiquei com inúmeras partes: relembrando as cenas de filmes citados à mesa, ops, no Balcão, discutindo literatura (no meu caso, aprendendo), discorrendo sobre a memória de moradores de alguma Vila (mais precisamente a Madalena), planos de um futuro mais prazenteiro, apostas sobre shows que não hão de haver (ele insiste que o Chico não fará mais show), as listas que nunca acabam dos filmes favoritos, a troca de receitas, e a elaboração de pratos onde os ingredientes conversam (a abobrinha que só fala abobrinha!). Beatriz Milhazes em guardanapos, em preto e branco, Sala São Paulo, coberturas, o boteco na frente da delegacia e, por fim, a fuga do Templo Sagrado no meio da noite para comprar um CD da Cibelle, para ouvir acompanhado de polenta mole... Quanta coisa! Presentaço mesmo!

Beijos.